Rumo à Cosmologia



Henrique Fleming



 

 

 

Nos anos 70 uma revista científica alemã de grande prestígio, a Zeitschrift für Physik, recusava liminarmente qualquer artigo que tivesse como tema a cosmologia. Nos dias de hoje, ao contrário, os físicos que estudam as partículas elementares utilizam, como argumento principal para obter os fundos de que necessitam para suas experiências, que estas poderão revelar como era o universo em seu início. Não só, mas, o hubris dos praticantes desta arte atingiu níveis raros, memo entre físicos: "Trabalhando com o Prof. Edward Farhi, entre outros, Alan Guth explorou a questão de saber se é, em princípio, possível, iniciar uma inflação (em sentido cosmológico) num laboratório hipotético, criando, assim, um novo universo." Alan Guth, professor do Massachusetts Institute of Technology, é um dos principais nomes da cosmologia contemporânea. Esta citação, tirada de sua homepage, mostra que sua próxima ambição é criar um novo universo. Em outras épocas precisaria mesmo de outro universo, para não ser queimado vivo neste, depois dessas palavras sacrílegas. Na nossa, trata-se de um simples projeto de pesquisa. A criação de um novo universo (que, explica, não causará problemas, pois escapará por um túnel de minhoca, ou "wormhole") terá como subproduto uma banal tese de doutoramento.

Neste artigo pretendo explicar como ocorreu tal aumento de prestígio nessa área da física. Para isso vou precisar falar também de períodos anteriores, ainda que mais superficialmente.

Albores

Cosmologias sempre existiram, indissoluvelmente associadas aos mitos da criação. Antes de qualquer indício empírico, conjecturou-se que o universo fosse infinito e muito monótono, repetindo-se à desmesura. Lucrécio formula com elegância: Não importa o ponto que alguém ocupe: o universo estende-se a partir dele da mesma forma em todas as direções, sem limite. Isto, no primeiro século a.C. No entanto, foi apenas no século XX que se comprovou a existência de alguma coisa além da nossa galáxia. Não é nenhuma novidade, porém, que a imaginação galopa enquanto a certeza engatinha. Ainda no começo do século XIX, o "firmamento", como se usava dizer, era uma procissão de pedras desde pequenas a enormes, a Terra incluída, que percorriam curvas cônicas. O que fossem essas pedras nos era totalmente desconhecido. Ocorreu então a primeira grande descoberta.

O grande físico alemão Gustav Kirchhoff, natural de Königsberg, hoje Kaliningrad, encontrava-se, em 1859, em Heidelberg. Ali associou-se, para seu trabalho de pesquisa, ao grande químico Robert Bunsen. Tiveram a idéia de examinar, decompondo-a em suas cores, ou seja, em suas freqüências, a luz que cada substância emite quando é incendiada. Descobriram que o espectro dessa luz, ou seja, de que cores se compõe, e em que proporção relativa, é característico de cada substância, como as impressões digitais de uma pessoa. Podiam, então, descobrir a identidade de uma substância a partir de sua luz. Kirchhoff teve então uma segunda idéia genial: examinar desta forma a luz das estrelas, e, assim, determinar de que substâncias são compostas. Sua conclusão foi de que as estrelas são constituídas pelas mesmas substâncias que conhecemos na Terra. Ou seja, as leis da física e da química do "espaço" são as mesmas descobertas aqui na Terra. É desnecessário ressaltar a importância desta descoberta para qualquer estudo astronômico, e, em particular, para o estudo do universo como um todo, e de sua origem, que é o que é a cosmologia.

Pouco antes, em 1935, o filósofo Auguste Comte, criador do Positivismo, concluía ser destituído de sentido falar sobre a composição química das estrelas distantes, uma vez que o homem jamais poderia explorá-las: "o campo da filosofia positiva está inteiramente contido dentro dos limites do sistema solar, sendo o estudo do universo inacessível em qualquer sentido positivo". É curioso que, atendo-se aos termos do Sr. Comte, falar sobre "estrelas distantes" carecia de qualquer "sentido positivo", uma vez que foi apenas em 1838 que ocorreu a primeira medida concreta da distância de uma estrela, pelo método da paralaxe (Struve, Bessel).

O problema central da cosmologia é estender aquilo que sabemos da pequena região a que temos acesso, à totalidade do universo. Kirchhoff dera um passo gigantesco: descobrira que podemos usar para isso a "nossa" física. Por outro lado, sabemos, como ressaltado por Einstein, que a física só é simples "no pequeno". Com isto ele queria dizer que as leis da física se expressam em termos das relações entre o que acontece num ponto e o que acontece em sua imediata vizinhança. Matematicamente isto quer dizer que as leis da física são escritas na forma de equações diferenciais. O problema de estender este conhecimento local a pontos muitos distantes, tornando-o um conhecimento global, é um problema com o qual os físicos não estão muito familiarizados. A própria matemática necessária para tal, a topologia, é conquista recente e ainda incompleta, dita por muitos a principal contribuição da matemática do século XX.

O substituto desta matemática é uma grande hipótese simplificadora, denominada princípio cosmológico. A afirmação de Lucrécio, acima, é um princípio cosmológico. O único princípio cosmológico fértil, no contexto da física newtoniana, era este: o universo é estático, homogêneo e isotrópico. Ou seja, o universo é sempre o mesmo (vale dizer, eterno), e todos os lugares são equivalentes, assim como todas as direções. Sobre se era finito ou infinito, as opiniões se dividiam. Newton parecia preferi-lo infinito: "But if the matter was evenly disposed throughout an infinite space, it could never convene into one mass; but some of it would convene into one mass and some into another, so as to make an infinite number of great masses scattered at great distances from one another throughout all that infinite space".

A principal objeção contra este universo sem fim era o chamado paradoxo de Olbers (1823), já antevisto por Kepler e Halley. Trata-se do seguinte: pelo princípio cosmológico, o universo é homogêneo, logo, sua matéria está distribuída uniformemente por toda a sua extensão. Em particular, as estrelas estão uniformemente distribuídas. Construa o leitor o seguinte rudimentar instrumento ótico: um cone, como um chapéu de palhaço, com um furo no vértice. Suas dimensões são tais que, apontado para o Sol, a imagem deste preenche exatamente o campo de visão. Apontêmo-lo agora em outra direção. Este campo de visão abrangerá uma infinidade de estrelas, algumas mais próximas, outras mais distantes. Considere as estrelas, neste campo de visão, que estão a uma distância d de nós. A intensidade de sua luz é atenuada pela distância, de maneira que o que vemos é uma certa intensidade intrínseca da estrela, em média igual para todas as estrelas (pelo princípio cosmológico!), dividida pelo quadrado de d. Considere agora uma segunda camada, a uma distância, digamos, 2d. A intensidade da luz de uma dessas estrelas, quando nos atinge, será ¼ da intensidade de uma das estrelas anteriores, por causa da diminuição quadrática. Por outro lado, dentro desse campo de visão, as estrelas à distância 2d serão 4 vezes mais numerosas, por que a superfície que o campo de visão abarca, cresce com o quadrado da distância. Ou seja, não importa a distância a que uma estrela está de nós. Ela e suas vizinhas visíveis num determinado ângulo sólido (é o nome técnico para o chapéu de palhaço) contribuem o mesmo que as estrelas, visíveis dentro deste ângulo sólido, a qualquer distância. Em particular, o mesmo que o Sol, já que este abarca completamente o ângulo sólido. Em conseqüência, deveria haver uma claridade independente da direção em que se olhasse. Conseqüentemente, não haveria noite!

Em 10 de junho de 1854, Bernhard Riemann, um jovem matemático, incitado por Gauss a obter o que nós chamaríamos de Livre-Docência, apresentou, como parte do concurso, uma aula que é talvez a mais famosa de todos os tempos. O tema era Sobre as hipóteses fundamentais da geometria, e nela Riemann introduziu generalizações da geometria que permitiam falar em espaços curvos de qualquer dimensão, e sugeriu, ao final da aula, que se trata de um problema de física, determinar se o espaço em que vivemos é o espaço euclidiano ou uma de suas generalizações curvas. Estes conceitos e esta linguagem iriam permitir a Einstein formular a sua teoria da gravitação, que tornaria a cosmologia uma ciência quantitativa.

A Teoria da Relatividade

Como é bem sabido, em 1905 Albert Einstein publicou o seu trabalho Sobre a Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento, que, malgrado o título, era uma reformulação revolucionária dos conceitos de espaço e tempo, a que chamamos hoje Relatividade Restrita. Pouco depois, em uma conferência, Hermann Minkowski propunha que os conceitos de espaço e tempo fossem uma percepção imperfeita do verdadeiro conceito fundamental, que era o espaço-tempo, e mostrava que a teoria da relatividade podia ser formulada como uma geometria muito simples nesse espaço-tempo. O conceito foi encampado por Einstein, que passou a usá-lo em suas tentativas de generalizar a Relatividade. Isto foi conseguido em 1916, no artigo Fundamentos da Relatividade Geral, no qual faz uso essencial das geometrias propostas por Riemann, citadas acima, com a diferença importante de que eram geometrias no espaço-tempo, e, portanto, em espaços quadri-dimensionais. Esta teoria, que, originalmente se destinava a ser uma teoria em que todos os referenciais fossem tratados em pé de igualdade, destituindo os referenciais inerciais de sua posição privilegiada, revelou-se ser uma teoria da gravitação, propondo-se como substituta da consagrada teoria da Gravitação Universal, de Isaac Newton, com a qual concorda, porém, para campos gravitacionais fracos e de lenta variação, tais como os interplanetários, na maioria dos casos. A consagração desta teoria deu-se em 1919, com a observação, em Sobral, Ceará, e na Ilha do Príncipe, na costa da África, do extraordinário fenômeno, não newtoniano, do desvio gravitacional da luz, que permitiu a observação de uma estrela que se encontrava atrás do Sol, durante um eclipse.

Em 1917, no artigo Considerações cosmológicas na teoria da relatividade geral, Einstein aplica, pela primeira vez, sua teoria ao problema cosmológico. Apoiando-se na observação empírica (compatível com o estado rudimentar das observações astronômicas da época, para objetos muito distantes) de que as velocidades das estrelas são pequenas, adota como princípio cosmológico um universo estático e espacialmente homogêneo e isotrópico. De início, não consegue obter, de suas equações, qualquer solução com estas propriedades. Modifica-as, então, acrescentando um termo denominado constante cosmológica, e obtém, assim, a solução procurada. Mais tarde, arrependido, considera esta contrafação de suas equações básicas "a maior asneira de minha vida". A grande contribuição da relatividade geral à cosmologia viria, porém, de outras mãos.

Alexander Friedmann, um matemático russo de São Petersburgo, começou a interessar-se pela física por influência de Paul Ehrenfest, que vivia então na Rússia. Em 1922 enviou o artigo Sobre a curvatura do espaço para a revista Zeitschift für Physik, (que ainda não adquirira preconceitos contra a cosmologia). Nele, Friedmann mostrava que o raio de curvatura do universo podia ser tanto uma função crescente quanto uma função periódica do tempo. Hoje em dia costumamos classificar suas soluções em três categorias: duas delas, Friedmann aberto e Friedmann chato, propõem um universo infinito, e em indefinida expansão (Friedmann chato é espacialmente euclidiano); a terceira, Friedmann fechado, propõe um universo finito e que alterna, periodicamente, expansões e contrações.

São soluções das equações de Einstein, e o parâmetro que determina qual das soluções corresponde ao nosso universo é a densidade de matéria-energia, que é a mesma em todos os pontos, já que é adotado o princípio cosmológico que reza que o espaço do universo é homogêneo e isotrópico. Era a primeira vez que se falava em universo em expansão, entre físicos.

Einstein não tardou a responder, pelos canais oficiais, ao artigo de Friedmann. Em 18 de setembro de 1922 apareceram, na mesma revista, suas palavras: Os resultados relacionados ao universo (Welt) não-estacionário, contidos no artigo [de Friedmann] parecem-me suspeitos. Na realidade, resulta que as soluções nele apresentadas não satisfazem as equações de campo. Em 6 de dezembro Friedmann escreveu a Einstein: Considerando que a possível existência de um universo não-estacionário possui um certo interesse, permito-me apresentar-lhe os cálculos que fiz [...] para verificação e críticas.

...No caso de o senhor achá-las corretas, tenha por favor a gentileza de informar disso os editores do Zeitschrift für Physik; talvez, nesse caso, o senhor considerasse a publicação de uma correção de sua afirmação, ou fornecesse uma oportunidade para que uma parte desta carta fosse publicada.

Einstein estava, porém, no Japão, e só voltou em março e, aparentemente, não lera ainda a carta de Friedmann quando, em maio, visitando Ehrenfest, que agora morava em Leiden, na Holanda, encontrou Krutkov, colega de Friedmann em S. Petersburgo, que lhe contou sobre o conteúdo da carta, em detalhe. Einstein admitiu o seu erro e escreveu imediatamente ao Zeitschrift: "Em minha nota prévia critiquei [o trabalho de Friedmann ‘Sobre a curvatura do espaço’]. No entanto, minha crítica, como me convenceu uma carta de Friedmann relatada a mim pelo Sr. Krutkov, baseou-se em um erro em meus cálculos. Considero que os resultados do Sr. Friedmann são corretos e iluminam o problema."

Neste meio tempo, um trabalho extraordinário vinha sendo desenvolvido pela escola americana de astronomia, especialmente Harlow Shapley, Henrietta Leavitt e Edwin P. Hubble, que culminou com o estabelecimento de um método de determinação de distâncias para objetos celestes distantes demais para o uso da paralaxe. De particular importância e beleza o estudo das Cefeidas, estrelas pulsantes, por Henrietta Leavitt, que notou que o período da pulsação estava relacionado ao brilho intrínseco da estrela. Assim, medindo o período de uma Cefeida e o brilho com que a vemos, podemos determinar a que distância está.

A partir desta descoberta e de outras que ele mesmo fez, Edwin P. Hubble descobriu a expansão do universo, e estabeleceu, em 1929, que velocidade de recessão de uma galáxia é proporcional à sua distância a nós. Esta relação, a lei de Hubble diz, mais precisamente, o seguinte: as galáxias estão se afastando de nós. Quanto mais distantes, mais velozmente, de acordo com a fórmula v=Hd, onde d é a distância, v a velocidade, e H é um número, a constante de Hubble, cujo valor, num mesmo instante, é o mesmo para qualquer galáxia. A velocidade das galáxias foi determinada pelo efeito Doppler, que altera a freqüência aparente da estrela em função de sua velocidade.

Esta lei está contida nas soluções de Friedmann, e, naquele contexto, dizem mais: todas as galáxias estão se afastando, umas das outras, obedecendo essa lei. O que nós vemos daqui, essa fuga de galáxias, é vista de qualquer outro ponto do universo. Como soluções essencialmente equivalentes às de Friedmann foram obtidas por Lemaître em 1927, e este estabeleceu pela primeira vez a conexão com a descoberta de Hubble, costuma-se chamar a cosmologia baseada nesses modelos de cosmologia de Friedmann-Lemaître, ou ainda de Gamow, ou em qualquer combinação desses três nomes.

O modelo padrão do universo

É uma conseqüência simples das equações de Einstein relativas ao modêlo de Friedman que a entropia do universo é constante: a expansão se dá a entropia constante. Se invertermos o processo, ou seja, se "passarmos o filme ao contrário", o universo estará se contraindo a entropia constante. Todos sabemos, então que a temperatura aumenta, em tais processos. Ou seja, se o universo está se expandido a entropia constante, sua temperatura no passado era maior do que agora , de modo que, nos primeiros instantes, o universo era quentíssimo. Esta é a principal razão para denominar o instante da criação do universo como o Big Bang. No entanto, não houve qualquer explosão. Uma explosão tem como característica principal um grande gradiente de pressão, enquanto que o universo, sendo homogêneo, tinha a mesma pressão em todos os pontos, mesmo no início!

A alta temperatura tinha uma conseqüência importante: a agitação térmica era tal que não podia haver matéria agregada: não havia moléculas, não havia átomos, e nem mesmo núcleo. O universo era habitado por partículas elementares. Numa versão, por quarks, leptons e fótons. Em todo o caso, por muitas partículas, carregadas ou não, em intensa interação, e, por conseguinte, em equilíbrio térmico. Como a luz (fótons) interage apenas com partículas carregadas, a "matéria" existente nos primeiros momentos era essencialmente opaca à luz, tanto os fótons eram absorvidos (e re-emitidos) por ela. Nessas condições, temos o que se chama radiação de equilíbrio: a luz, e outras radiações eletromagnéticas têm um espectro peculiar, dito espectro de Planck. Com a expansão e o conseqüente resfriamento, a agitação térmica foi diminuindo, e as condições para que as partículas se agregassem, formando núcleos, depois átomos, foram se estabelecendo. Em um certo momento, tornou-se possível a formação de átomos, isto é, os elétrons foram capturados pelos núcleos. A matéria tornou-se, de uma hora para a outra, eletricamente neutra. Em conseqüência, tornou-se essencialmente transparente para a luz e todas as formas de radiação eletromagnética. A radiação de equilíbrio libera-se da matéria, e viaja pelo espaço, a seu bel prazer. Mostra-se sem muitas dificuldade que, nessas condições, uma radiação com espectro de Planck conserva este espectro. A expansão do universo vai alterando, apenas, a temperatura dessa radiação de Planck.

Assim sendo, esta radiação deve existir ainda hoje. O físico russo-americano George Gamow, com Ralph Alpher e Robert Herman, em 1948 previram algumas de suas características, baseando-se em um modelo para a síntese, em escala cosmológica, dos núcleos dos elementos mais leves: deveria ser uma radiação de Planck, homogênea e isotrópica, e de temperatura bem baixa, que estimou em 4K, que é próxima do zero absoluto. Em 1964, dois jovens rádio-astrônomos, Arno Penzias e Robert Wilson, descobriram acidentalmente essa radiação (CMB, "cosmic microwave background") usando uma antena direcional de alta precisão que estava sendo desenvolvida para comunicação com satélites artificiais. O que eles detectaram foi uma radiação isotrópica, ou seja, de igual intensidade qualquer que fosse a direção para onde a antena fosse apontada, correspondendo a uma temperatura de aproximadamente 3 Kelvin (2,73 Kelvin, para ser mais preciso). Como desconheciam os trabalhos de Gamow e outros, mais recentes, de Robert Dicke e Jim Peebles, da Universidade de Princeton, que propunham a existência de uma radiação com essas características, e como radiações isotrópicas são absolutamente incomuns, imaginaram que se tratasse de algum ruído local, o que acabou causando a morte de vários pombos inocentes que viviam naqueles tetos, mártires da cosmologia. No fim, com pombos ou sem pombos, a radiação persistia. Acabaram sabendo da previsão de Gamow, e anunciaram a sua descoberta, mais tarde premiada com um prêmio Nobel.

Esta foi, provavelmente, a descoberta, isolada, mais importante da história da cosmologia, porque não só eliminou todos os modelos concorrentes do universo que não previam um início muito quente dele, como forneceram o que é hoje o instrumento mais importante para o exame dos estágios iniciais do nosso mundo. Medidas muito precisas das características dessa radiação têm sido a fonte dos inúmeros progressos, e muitas surpresas que têm marcado a cosmologia dos nossos dias. A descoberta de Penzias e Wilson tornou evidente a existência de um Big Bang, ou coisa equivalente. A revolução tecnológica que permitiu a colocação de observatórios astronômicos em órbita, bem como a grande evolução dos telescópios óticos, e de outros tipos, na Terra, eliminando ou corrigindo as distorções causadas pela atmosfera, fizeram da cosmologia uma ativa área experimental.

Descobriu-se o que medir, e adquiriram-se os métodos para tal. A cosmologia tornara-se uma verdadeira ciência.

Terminamos aqui a nossa brevíssima história. Outros artigos tratarão, em detalhe, dos temas que aqui mencionamos. Como é do espírito desta revista que os artigos não devam ser excessivamente adornados por notas de rodapé e referências bibliográficas, citaremos, para uso do leitor que queira aprofundar esses temas, um número mínimo de obras em que isto pode ser feito. São elas, Cosmology, de Edward R. Harrison, Cambridge University Press, (1981), Gravitation and Cosmology, de Steven Weinberg, John Wiley, (1972), Three Degrees Above Zero, de Jeremy Bernstein, Cambridge University Press (1984) e Wrinkles in Time, de George Smoot, Avon Books, New York (1993). O livro de Harrison é extraordinário, e deve ser lido em primeiro lugar, fundamentando as outras leituras. Bernstein apresenta de maneira irresistível a grande descoberta de Penzias e Wilson, em meio a outras interessantíssimas pesquisas de grande Laboratório Bell. Smoot, uma autoridade em radiação cósmica de fundo, narra a física e a aventura deste gênero de pesquisa, em um livro difícil de largar. Weinberg é um tratado de cosmologia para estudantes de física, que tem boas partes históricas.

 

Apêndice

 

 

Uma galeria de princípios cosmológicos.

"Mil ‘mahayugas’ – 4.320.000.000 anos pela contagem humana – constituem um único dia de Brahma, um único ‘kalpa’. Conheci a terrível dissolução do universo. Vi todos perecerem, repetidamente, a cada ciclo. Naquele terrível tempo, cada átomo dissolve-se nas águas primevas e puras da eternidade, de onde todos vieram, originalmente." (Cosmologia muito antiga, da Índia).

"O mundo foi construído tomando como modelo aquele que é compreensível pelo discurso e entendimento racionais, e está sempre no mesmo estado" (Platão, Timeu, circa 400 a.C)

"Deus é um círculo cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não está em nenhum lugar" (Empédocles, quinto século a.C).

"O tempo é a medida do movimento" (Abu ibn Sina, ou Avicena, circa ano 1000 d.C.)

"O espaço é uma forma abstraída da matéria, existente apenas na consciência" (da Rasa’il,

enciclopédia de 51 volumes conhecida como o Corão depois do Corão, circa ano 1000).

"A matéria do universo tem seu centro em toda a parte e sua circunferência em nenhuma parte" (Nicolau de Cusa, século XV).

"É evidente que todos os corpos celestes, colocados como que num lugar predestinado, são aí formados como esferas, e que eles tendem em direção aos seus centros, e que, em volta deles, há uma confluência de todas as suas partes" (William Gilbert, século XVI)

"Tem sido dito que, se as nebulosas espirais são ilhas, nossa própria galáxia é um continente. Suponho que a minha humildade tenha se tornado um orgulho típico de classe média, pois me desagrada a presunção de que pertencemos à aristocracia do universo. A Terra é um planeta de classe média, não um gigante como Júpiter, também não um dos minúsculos vermes, como os menores planetas. O Sol é uma estrela mediana, não um gigante como Capella, mas bem acima das classes mais baixas. Assim, parece-me errado que nos coubesse a sorte de pertencer a uma galáxia excepcional. Francamente, não creio nisso: seria uma coincidência excessivamente fortuita. Penso que a relação entre a Via Lactea e as outras galáxias seja um tema sobre o qual muita luz será lançada por pesquisas observacionais adicionais, e que, finalmente, concluiremos que há muitas galáxias de igual tamanho, e mesmo maiores, do que a nossa. (Arthur Eddington, "The Expanding Universe", 1933).

 

 

 

Henrique Fleming, físico e professor do Instituto de Física da USP, é autor, além de artigos científicos sobre a física das partículas elementares e cosmologia, dos livros on-line "Mecânica Quântica" e "Campos vetoriais para o homem prático", disponíveis em sua homepage, cujo endereço é http://www.hfleming.com