Ettore Majorana, gênio e tragédia


Foto de Majorana Ettore Majorana na Universidade.


Leonardo Sciascia foi um dos grandes escritores italianos do século XX. Siciliano, ocupou-se dos temas de sua região, que o seu gênio tornou universais. Foi mais famoso na França (lembrava Voltaire, e gostava disso!) do que na Itália. Escreveu sempre obras breves, tensas, sobre a Mafia, mas, sobretudo, sobre uma cultura da cumplicidade que permitiu o desenvolvimento da Mafia. Escrevia maravilhosamente, à Stendhal, talvez melhor. Entre seus livros, uma surpresa: La scomparsa di Majorana   (O desaparecimento de Majorana), que tratava da vida, ou, antes, da aparente morte, de um físico teórico, Ettore Majorana. O leitor se lembrará dos neutrinos de Majorana, ou das forças de Majorana, no núcleo. É este Majorana mesmo (1) . Em suas próprias palavras:

Nasci em Catania em 5 de agosto de 1906. Realizei os estudos clássicos, terminando o segundo grau em 1923; depois freqüentei regularmente os estudos de engenharia em Roma até o início do último ano. Em 1928, desejando ocupar-me de ciência pura, pedi e obtive a transferência para a Faculdade de Física, e me formei em 1929 em Física Teórica sob a orientação de Sua Excelência Enrico Fermi, com a tese "A teoria quântica dos núcleos radioativos", obtendo nota máxima e louvor. Nos anos sucessivos freqüentei livremente o Instituto de Física de Roma, acompanhando o movimento científico e realizando pesquisas teóricas de várias índoles. Ininterruptamente tive a guia sapiente e estimulante de S.E. Enrico Fermi.

Ninguém escreve deste jeito a não ser para fins burocráticos, e realmente se tratava disso. O texto acima  fazia parte do que seria, entre nós, a ficha cadastral da FAPESP, por exemplo. Mas é elucidativo, e conta a história com brevidade. Fermi é chamado de Sua Excelência porque este era o título que lhe cabia, como membro da Reale Accademia d'Italia(2) .

   Majorana tinha se dirigido à física por indicação  de seu colega   Emilio Segrè , também politécnico, também  atraído por Fermi.  Sua entrada em cena é descrita por outro dos colaboradores de Fermi, Edoardo Amaldi , assim:

No outono de 1927 e no início do inverno de 1927-28 Emilio Segrè, no novo ambiente formado, poucos meses antes, em torno a Fermi, falava freqüentemente das qualidades excepcionais de Ettore Majorana enquanto, contemporaneamente, tentava convencer Majorana a seguir o seu exemplo, fazendo-o notar como os estudos de física fossem mais congeniais, do que os de engenharia, às suas aspirações científicas e às suas capacidades especulativas. A transferência à física se deu no princípio de 1918, depois de uma conversa com Fermi, cujos detalhes podem servir bem para esboçar alguns aspectos do caráter de Ettore Majorana. Ele foi ao Instituto de Física na rua Panisperna e foi acompanhado à sala de Fermi, onde se encontrava também Rasetti . Foi então que o vi pela primeira vez. De longe parecia magro, com um passo tímido, quase incerto; de perto notavam-se os cabelos negríssimos, a pele morena, as faces levemente encovadas, os olhos muito vivazes e cintilantes: no conjunto, o aspecto de um sarraceno.  Fermi trabalhava então no modelo estatístico que, em seguida, ficou conhecido como modelo de Thomas-Fermi. A conversa com Majorana logo se dirigiu às pesquisas em andamento no Instituto, e Fermi expôs rapidamente as linhas gerais do modelo e mostrou a Majorana os preprints de seus trabalhos recentes  sobre o tema,e, em particular, a tabela que recolhia os valores numéricos do assim-chamado potencial universal de Fermi. Majorana ouviu com interesse e, depois de ter pedido alguns esclarecimentos, foi-se embora, sem manifestar seus pensamentos e intenções. No dia seguinte, no fim da manhã, apresentou-se de novo no Instituto, foi direto à sala de Fermi e pediu-lhe, sem qualquer preâmbulo, que lhe mostrasse a tabela do dia anterior. Com  ela em mãos, extraiu do bolso uma folha que continha uma tabela análoga, calculada por ele nas últimas 24 horas, transformando, segundo se recorda Segrè, a equação de segunda ordem não-linear de Thomas-Fermi em uma equação de Riccati, que depois tinha integrado numericamente. Confrontou as duas tabelas e, tendo constatado que estavam em pleno acordo, disse que a tabela de Fermi estava certa...

Já sabemos que foi aceito por Fermi. Dizer que o impressionou é dizer pouco. Nas palavras de Laura Fermi:

    Majorana era um gênio, um prodígio em aritmética, um portento em visão e potência mental, a mente mais profunda e crítica de todo o prédio da Física. Ninguém precisava de uma régua de cálculo , ou de calcular por escrito, quando Majorana estav por perto. "Ettore, qual é o logaritmo de 1538?" perguntava um. Ou, "qual é a raiz quadrada de 243 vezes 578 ao cubo?" (3) Uma vez ele e Fermi competiram: Fermi com lápis, papel e uma régua de cálculo; Majorana com sua mente e nada mais. Empatou!

Sobretudo, era esquisito. Continua Laura Fermi:

Majorana tinha, porém, um caráter estranho: era excessivamente tímido e introvertido. De manhã, quando ia de bonde ao Instituto, punha-se a pensar, com a testa franzida. Vinha-lhe uma idéia nova, ou a solução de um problema difícil, ou a explicação de certos resultados experimentais que tinham parecido incompreensíveis: procurava nos bolsos, tirava um lápis e um maço de cigarros no qual garatujava fórmulas complicadas. Saltava do bonde e caminhava absorto, cabeça inclinada, os cabelos negros sobre os olhos. Chegado ao Instituto, procurava Fermi ou Rasetti e, com o maço de cigarros à mão, explicava a idéia.

Em geral causava entusiasmo e era exortado a publicar o resultado. Mas não. Fechava-se em si mesmo, dizia que era coisa de criança. Fumado o último cigarro, jogava o maço, e sua descoberta, no lixo... Isto aconteceu, por exemplo, com sua proposta de que o núcleo era formado por prótons e neutrons, anterior a Heisenberg. Apesar dos esforços de Fermi, recusou-se a publicar o trabalho.

Um estágio no exterior era de regra. Fermi sugeriu que fosse trabalhar com Heisenberg, em Leipzig, o que ele fez. Chegou lá em 20 de janeiro de 1933. No dia 22 escreve à mãe: No Insituto de Física me aceitaram muito cordialmente. Tive uma longa conversa com Heisenberg que é uma pessoa  extraordinariamente  cortez e simpática. No dia 18, ao pai: Escrevi um artigo sobre a estrutura do núcleo que agradou muito a Heisenberg, embora contivesse algumas correções à sua teoria.

Para encurtar, tornou-se um grande admirador de Heisenberg, de quem falava em todas as cartas. Voltou a Roma nos primeiros dias de agosto e
iniciou um período de recolhimento. Quase não aparecia no Instituto. Falou-se de uma depressão, causada por um escândalo em família.

Eis que, nesse momento, surgem três cátedras de Física Teórica, para as quais havia três candidatos, Gian Carlo Wick (dos Wick-ordered products e da rotação de Wick), Giulio Racah, grande nome ligado aos algoritmos do momento angular na mecânica quântica, e Giovanni Gentile Jr., pai dos gentíleons , assim denominados pelo prof. Mauro Cattani, em seus trabalhos sobre para-estatísticas. Este último era filho do todo-poderoso filósofo Giovanni Gentile, ministro de Mussolini. Três vagas para três candidatos, nenhum problema. Voltemos a Laura Fermi:

A banca, da qual fazia parte também Fermi, reuniu-se para examinar os títulos dos candidatos. Nesse momento um acontecimento imprevisto tornou vãs todas as previsões: Majorana decidiu-se, improvisamente, a concorrer, sem consultar ninguém. As conseqüências de sua decisão eram evidentes: ele seria classificado em primeiro e Giovannino Gentile ficaria fora.

Mas ministros têm outros recursos. Giovanni Gentile suspendeu o concurso e, nesse meio tempo, criou uma nova cátedra de física teórica em Nápoles,  nomeando para ela  Ettore Majorana,  por clara fama, uma figura jurídica existente, mas de raríssima aplicação. E o concurso deu certo. Giovanni Gentile Jr. tornou-se catedrático, e, pouco tempo depois, viria a morrer numa expedição polar em balão, chefiada por Umberto Nobile.

Majorana assumiu sua cátedra, e sua vida em Nápoles, nos três primeiros meses de 1938, se resumiu ao hotel e ao Instituto de Física. Depois das aulas costumava falar longamente, de física, com Carrelli, diretor do Instituto.

No dia  25 de março, Carrelli recebe um telegrama urgente de Majorana, de Palermo, pedindo-lhe que ignore a carta que lhe mandara. Pouco depois recebeu a carta. Dizia:

Caro Carrelli, tomei uma decisão que era já inevitável. Não há nela um só grão de egoísmo, mas estou consciente dos problemas que o meu desaparecimento repentino poderá causar a você e aos estudantes. Também por isso peço que me perdoe, mas sobretudo pela desilusão que causarei, diante de toda a confiança, sincera amizade e simpatia que você demonstrou nesses meses. Peço também que leve minhas lembranças àqueles a quem aprendi  a conhecer e apreciar no seu Instituto, em particular a Sciuti. Deles conservarei uma cara lembrança ao menos até as onze desta noite, e possivelmente mesmo depois.

Logo em seguida, chegou outra carta, dizendo:

Caro Carrelli, espero que o telegrama e a carta tenham chegado juntos. O mar me recusou, e voltarei amanhã ao Hotel Bologna, viajando junto, talvez, com esta carta. Tenho, contudo, a intenção de renunciar ao ensino. Não me tome por uma garota ibseniana, porque o caso é diferente. Estou à sua disposição para ulteriores detalhes.

Mas nunca mais apareceu, nem qualquer traço de seu corpo foi encontrado. Tinha 31 anos.

Estas notas sobre Majorana não têm nada de original. Todo o material em itálico é tradução direta do livro "La Scomparsa de Majorana", de Leonardo Sciascia. Também usei o livro de Laura Fermi, "Atoms in Family" e lembranças de um livro de Edoardo Amaldi, intitulado "Majorana", que li muito tempo atrás, na Itália. Erasmo Recami também escreveu um livro, que investiga a possibilidade de que Majorana tenha sido visto na Argentina, nos anos 50. Nada se comprovou, porém.


Notas

(1) Porque existe um outro Majorana, Quirino, tio de Ettore, respeitado físico experimental que realizou testes da Teoria da Relatividade.
(2) Não se fazem mais academias como antigamente. Além do título de Excelência, o acadêmico tinha direito a um carro com motorista! A história da Reale Accademia d'Italia não é muito gloriosa. A academia tradicional italiana é a famosa Accademia dei Lincei, à qual pertenceu, por exemplo, Galileu Galilei, que às vezes, se assinava Galileo Galilei, Linceo. Como os Lincei se recusaram a nomear Mussolini como um deles, este fundou a Reale Accademia, de vingança.
(3)Tá certo! Nem Majorana poderia calcular isso: é ambíguo! Mas a esposa de Fermi era uma dona de casa, não tinha o obrigação de explicitar, ou entender, as regras de precedência dos operadores!