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Diálogo de duas culturas

Henrique Fleming

23-6-2007

Dialogo di Primo Levi e Tullio Regge
Milano, Edizione di Comunità, 1984
O escritor inglês C.P. Snow criou a expressão As duas culturas, referindo-se à cultura humanística e à cultura científica, e à incomunicabilidade e incompreensão entre elas. A preocupação com a distância que separa cientistas de humanistas, aparentemente crescente, ocupou muito do seu tempo. Os problemas são bem conhecidos. A crítica de Ortega y Gassett em A Rebelião das Massas expõe a ignorância e arrogância dos cientistas; as dificuldades no sentido oposto são também abundantes. Benedetto Croce não tinha em alta conta a ciência, construída, para ele, sobre pseudoconceitos. Que todos ganhariam com uma interpenetração dessas áreas, e com a atenuação da ignorância-feita-virtude é, para mim, claro. Mas, o que fazer?
Primo Levi, o grande escritor italiano recentemente falecido, resolveu fazer algo. Dessa vontade surgiu o livro Diálogo. Desde já digo que é um validíssimo instrumento para o fim proposto: expor, uma para a aoutra, as duas culturas. O que há, talvez, de novo no processo é que se trata de um diálogo não entre um cientista e um humanista, mas entre dois que se destacaram nas "duas culturas", embora em medidas diferentes, em cada caso.

1  As personagens

Tullio Regge é um dos grandes nomes da física teórica contemporânea. Em 1980 recebeu, em Princeton, o prêmio Einstein, por seus trabalhos sobre a teoria geral da relatividade; nos anos 60 dominou a teoria das interações fortes, que são as interações responsáveis pela formação e estabilidade da matéria, com uma invenção sua, os pólos de Regge. A tentativa de entender esses conceitos revolucionários, brotados desse gênio turinês, gerou, em outras cabeças, a teoria das supercordas, a atual proposta para a "teoria de tudo".
Regge é um notável expositor da ciência em todos os níveis. Entre os seus trabalhos, não tão numerosos quanto originais e profundos, há um que é absolutamente surpreendente: preenche com dificuldade meia página da revista italiana Il Nuovo Cimento. Introduz as inexplicáveis simetrias de Regge para os coeficientes de Clebsch-Gordan, uma taboada usada pelos físicos para investigar, entre outras coisas, a forma dos átomos e dos núcleos. Esses coeficientes são apresentados em tabelas, que são pequenos livros, semelhantes a uma tábua de logaritmos. Grande engenho e um bom conhecimento da teoria dos grupos possibilitam economizar espaço na montagem da tabela. As simetrias de Regge permitem, de uma tacada só, diminuir o espaço ocupado por uma tabela de coeficientes de Clebsch-Gordan por um fator 4! Antes de um jantar que tardava a começar ele me contou as circunstâncias da descoberta. Estava hospedando os sogros, e lhe coubera dormir no sofá, que não acomodava bem os seus dois metros de altura. Para combater a insônia resolveu pensar no que houvesse de mais chato na física, os coeficientes de Clebsch-Gordan. Pela manhã estava pronto o artigo! As novas simetrias foram descobertas por um método quase gráfico. Sua origem não é, que eu saiba, conhecida até hoje. Este não é um trabalho clásico da física teórica, nem pertence à melhor safra do autor, mas é um belíssimo exemplo do que se poderia chamar uma miniatura em física. (Houve outros grandes miniaturistas. Erwin Schrödinger, um dos criadores da mecânica quântica, costumava escrever livros curtíssimos em que tratava, com grande profundidade e beleza, de capítulos da física que normalmente exigiam grossos tomos. São exemplos os seus Statistical Thermodynamics e Space-time Structures).
Como eu disse, Regge expressa-se com maestria em todos os niveis. Chegou a ter uma coluna no semanário l'Espresso, e comparecia regularmente às páginas de La Stampa, um dos principais diários da Itália. Por esses meios sua fama ultrapassou os confins acadêmicos e fez dele uma figura nacional. Entre os amigos que ganhou estava Primo Levi, nome muito ilustre na Itália e, penso, fora dela.
Levi era químico de formação e, como Regge, piemontês. São muito conhecidos seus livros Se questo è un uomo, La Tregua, La chiave a stella e, principalmente, Il sistema periodico. Durante a guerra teve de passar pelo pior, uma internação em um campo de extermínio nazista, onde seus conhecimentos de química lhe permitiram a sobrevivência do corpo. Sua morte suicida está a indicar a impossibilidade da sobrevivência da mente, em tais circunstâncias.
O livro é uma conversa dos dois grandes homens que se estende por 55 páginas e que trata de muitas coisas interessantes. De fato, é difícil largá-lo, uma vez começado. Trata em especial da educação dos dois, que foi aquela disponível para qualquer jovem italiano: a educação pública em todos os seus níveis. O pai de Regge, camponês paupérrimo de Borgo d'Ale, homem de grande inteligência, já se valera da instrução pública para, adulto, conseguir um diploma de agrimensor; o de Levi era um engenheiro, de família de posses. Ambos os filhos tiveram essencialmente a mesma ecucação, que lhes permitiu irem até onde os conduziu o talento. Levi, judeu, teve o obstáculo e a humilhação das leis raciais, se bem que, no seu caso, a corajosa independência (ou seja, desobediência) de vários professores tivesse atenuado os efeitos. Pobreza de um lado, discriminação do outro.

2  Línguas e livros

Tullio Regge abre o livro declarando uma mania secreta, em comum com Levi: estuda, sozinho, o hebraico antigo. É um interesse freqüente entre os físicos teóricos, o aprendizado de línguas. O grande Gauss, o príncipe das matemáticas, levou uma eternidade para se decidir entre ser um filólogo ou um matemático; William Rowan Hamilton, um dos mais profundos criadores da mecânica, falava uma quantidade enorme de línguas, e, mais perto de nós, Murray Gell-Mann, um dos principais físicos teóricos do século XX, passa suas horas de repouso estudando línguas antigas, o sânscrito em especial. O interesse de Regge pelo hebraico é filológico, e não literário ou religioso, como o dos seus ilustres predecessores citados. Mas acabam, ele e Levi, por comentar a Bíblia e o Talmud. Diz Levi: "... no Talmud há de tudo, e o contrário de tudo. Depende do filtro que se empregue. Pode-se extrair dele sentenças feministas ou anti-feministas, o louvor do estudo e sua abominação. Há verdadeiramente de tudo. Até bobagens, como aquela de que o Pai Eterno dedica três de suas vinte e quatro horas ao estudo do Torá, ou seja, de si mesmo." Daí se passa ao problema de fazer um computador falar, de grande interesse para Regge. Levi recebeu da RAI (Rádio e Televisão Italiana) um disco no qual um computador narra o seu conto Il verseggiatore, ao mesmo tempo em que se permite (o computador) comentar sobre os progressos que vem fazendo. Comenta Levi a sofisticação alcançada na interpretação da pontuação, e reconhece que há uma certa articulação, mas que o efeito final é irreal. O problema é o mesmo com a sintetização da música de um instrumento da orquestra clássica. O timbre "estacionário" é muito bem feito. É o ataque dos instrumentos que é ainda impossível de reproduzir satisfatoriamente.
Uma das principais obras de Levi é Il sistema periodico. Refere-se, naturalmente, ao sistema periódico dos elementos, descoberto pelo químico russo Mendeleev. Todos o estudamos sem apreciá-lo, no colégio. Não lhe coube melhor sorte que aos Lusíadas. O que é pouco conhecido é que essa fenomenal descoberta resultou de um esforço didático de Mendeleev, que procurava insistentemente maneiras de organizar a imensidão de informações necessárias ao trabalho em química, de maneira a aliviar a memória dos estudantes. Regras mnemônicas, enfim. Enquanto a maioria das regras mnemônicas são retidas pela simples estupidez das associações que evocam ("Sou o medo e terror constante do alumno vadio" serve para lembrar o valor de p), Mendeleev descobriu a regra mnemônica usada pela própria natureza! Nos nossos dias houve uma descoberta análoga, de importância semelhante, os diagramas de Feynman. Figurinhas que representam sumariamente um fenômeno, na linguagem da teoria quântica dos campos, e que, através de um pequeno dicionário, de resto muito bem organizado, permitem cálculos, e até mesmo análises estruturais a qualquer um. Feynman foi, em minha opinião, o maior dos professores de física; começo a crer que Mendeleev tenha sido o maior dos professores de química.
Nos duros tempos da guerra o pai de Regge, para sobreviver, arranjou um emprego na prefeitura de Venaria, uma cidadezinha próxima a Turim onde se encontra o castelo em que os reis da casa Savóia costumavam passar o verão. Morou no castelo, e o pequeno Tullio realizava excursões à luz de vela pelos imensos subterrâneos. Alí encontrou as instalações da farmácia do exército, um depósito inesgotável de estranhos compostos químicos, como o sulfeto de antimônio, o biiodeto de mercúrio "de um belo vermelho vivo que, aquecido, virava amarelo". Ácido pícrico, um explosivo. Anidrido arsenioso, que Levi lembra ser o veneno de Madame Bovary... Engoliu um pouco de lítio. Começava a sua carreira científica. Ao mesmo tempo Levi lia a bela série de divulgação científica da Mondadori, que apresentava, entre seus muitos títulos, Os caçadores de micróbios, A arquitetura das coisas, que era um livro sobre a nova genética, e o então muito influente, hoje completamente esquecido, Alexis Carrel, de O homem, esse desconhecido, que foi lançado também no Brasil.
Era uma formação caseira. Após uma breve análise, concluem que tinha de ser assim por causa da congiura gentiliana. Giovanni Gentile, filósofo, era o principal apoio intelectual do regime fascista. Foi ministro da educação e realizou a reforma do ensino, que favorecia, segundo Levi, o ensino das letras e do passado, em detrimento do estudo das ciências naturais. Sobretudo, instaurou um período de aprendizado passivo, sem espaço para a atividade crítica. Não é possível estudar ciência dessa forma. Os dois, jovens estudantes, perceberam logo tudo. Regge ficou de tal forma revoltado com a primazia do latim que atribuiu ao seu gosto tardio pelo hebraico um sentido de vingança. Convém notar porém que a história dos grandes cientistas revela, com grande freqüência uma educação pessoal conseguida não obstante a escola.
Chega-se ao ensino superior, Levi ainda durante a guerra, Regge um pouco depois. Foi para ambos uma experiência de liberdade. "Lembro-me de minha primeira aula de química do professor Ponzio, na qual tinha informações claras, precisas, controláveis, sem palavras inúteis, expressas em uma linguagem que me agradava extraordinariamente, até do ponto de vista literário: uma linguagem definida, essencial." Cinco horas por dia, tocando as coisas. A mão é um órgão nobre, mas a escola elementar, toda dirigida ao cérebro, não cuidava dela. O trabalho de equipe. "Errar juntos é uma experiência fundamental". Uma complicação, as leis raciais. "A libertação universitária coincidiu com o trauma de ouvir dizer: atenção, não és como os outros, vales menos: és avarento, estrangeiro, sujo, perigoso, indigno de confiança. Reagi sem perceber, acentuando a dedicação aos estudos." Muitos professores exerciam o "cripto-antifascismo", como, por exemplo, Perucca, na Escola Politécnica. Para a tese experimental, outro problema: era proibida por lei, aos judeus. Acolheu-o o físico Dallaporta: "com lei ou sem lei, quem se importa?". Pôde, assim, completar a sua formação.
Regge, ao seu tempo, inscreveu-se na Escola Politécnica, que abandonou, após o biênio, porque "tinha desenho demais". Passou-se para a física, onde encontrou Wataghin, retornado havia pouco do Brasil, onde havia introduzido a física moderna e criado uma grande escola, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Quando visitou Wataghin em sua imensa sala, entrou engenheiro e saiu físico, "sonhando de olhos abertos". Há páginas deliciosas sobre Wataghin e seus amigos Tatiana Pavlova, a grande bailarina, Rachmaninoff, Bulgakoff, Ungaretti ... De Turim Regge parte para os Estados Unidos, Rochester, onde se doutora e casa com uma física italiana. Depois, Leyden, onde conhece Wheeler, que o leva para o Instituto de Estudo Avançado de Princeton, onde permanece muitos anos, dividindo seu tempo entre a pesquisa pura ali, e o ensino (impuro?) em Turim.

3  A rédeas soltas

De um cientista ilustre, de um pensador ilustre, se espera uma visão do futuro, das possibilidades da ciência atual, se desenvolvida até seus limites, ignorados os entraves que não sejam de princípio, tais como a falta de dinheiro, de competência, a desorganização entre os vários setores envolvidos. Sabe-se que esta visão não será profética, mas sonhos, possíveis mas pouco prováveis. Regge e Levi pôem-se a discutir uma época do futuro em que novos seres, extraterrenos, incorporam em sua evolução, no cérebro, os novos materiais supercondutores. Por isso posseum uma percepção e uma inteligência rapidíssimas. Para eles os raios X são luz normal, e o que para nós é um relâmpago no céu, dura cem anos. Em poucas gerações entendem a origem dos relâmpagos e são capazes de construir uma astronave que utiliza um pequeno buraco negro, decolam e entram em contato com os "terráqueos". Absorvem instantaneamente toda a nossa tecnologia e, em poucos minutos, evoluem até um nível altíssimo, que nos custaria um milhão de anos. Sua língua se torna incompreensível. Regge não sabe como a história terminará. "Certamente, mal!" O ponto é que o universo, diz ele, pode acumular em sua escala de evolução, em tempos drasticamente diferentes, estruturas diversas, cada uma das quais pensando ser o único escopo da existência do universo. É um argumento contra o princípio antrópico, que anda empesteando os meios científicos.
Há ainda uma elegante descrição, feita por Regge, do modelo cosmológico favorito em nossa época, e da possibilidade de haver um grande número de dimensões, alem das três que percebemos, e de possíveis conseqúências que a existência dessas dimensões acarretaria. A física quântica entra em cena motivada pela interpretação de Everett-Wheeler, que supõe a existência de muitos universos paralelos, convenientes para acomodar as várias possibilidaes de resultado de uma medida, cada ramo do universo correspondendo a um desses resultados. Aqui seria surpreendente a ausência de uma referência ao Borges do "Jardim dos caminhos que se bifurcam", e ficamos sabendo que a referência existe já no trabalho original de Everett. Borges é um favorito de Regge, que se pôe a fazer contas sobre a Biblioteca de Babel, comparando-a com o tamanho do universo, esse gênero de estimativas às quais os físicos não são capazes de resistir. A última palavra sobre essas contas, sabemos, é a de W, Quine, em seu dicionário de filosofia. O resultado é surpreendente e decepcionante. A lógica é o grande desmancha-prazeres.
Há muita sabedoria neste livro. Não fosse a falta completa de bibliografia, ele poderia ser um ótimo instrumento introdutório às grandes idéias da ciência moderna, sob dois pontos de vista que, diferentes, se complementam muito bem. É uma pena, por exemplo, que não se tenha a indicação bibliográfica do trabalho de Freeman Dyson que levou Regge a imaginar os extra-terrenos ultra-rápidos. Várias outras citações de interesse vão requerer do leitor interessado alguma pesquisa bibliográfica. Mas não é um reparo essencial. Vale mais do que isso apreciar a sensibilidade de Levi navegando naquele universo de números e instrumentos. Na aula de química vê "uma linguagem definida, essencial", e no sistema periódico de Mendeleev "poesia, até mesmo com rima".
Encerro apropriadamente, com os comentários que faz sobre a sua atividade após a aposentadoria como químico. "Parecia-me dispor de avalanchas de tempo livre: se antes tinha escrito três ou quatro livros trabalhando de noite e aos domingos, agora escreveria outros vinte ou trinta. Não foi o que aconteceu: um amigo me dizia que para fazer as coisas é preciso não se ter tempo."



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On 25 Jun 2007, 11:51.