O Livro Da Natureza É Escrito Em Caracteres Matemáticos

(Galileu Galilei)

Conferência no Instituto de Física da USP, em 8 de abril de 2002

Henrique Fleming

Esta palestra abriu a série "Mini-Colóquios de Graduação", organizada pela Comissão de Graduação, e coordenada pelo Prof. Raphael Liguori Neto, a quem agradeço pela oportunidade de falar aos estudantes.

A linguagem da ciência

A frase que serve de título a esta palestra é uma livre interpretação do seguinte parágrafo de "Il Saggiatore":

La filosofia è scritta in questo grandissimo libro che continuamente ci sta aperto innanzi a gli occhi (io dico l'universo), ma non si può intendere se prima non s'impara a intender la lingua, e conoscer i caratteri, ne' quali è scritto. Egli è scritto in lingua matematica, e i caratteri sono triangoli, cerchi, ed altre figure geometriche, senza i quali mezzi è impossibile a intenderne umanamente parola; senza questi è um aggirarsi vanamente per un'oscuro laberinto.

Uma tradução improvisada : A filosofia (isto é, a ciência) está escrita neste grandíssimo livro que, continuamente, está aberto diante de nosso olhos (eu quero dizer o universo), mas que não se pode entender se não se aprende a entender a língua, e a conhecer os caracteres, nos quais está escrito. Ele é escrito em língua matemática, e os caracteres são os triângulos, círculos, e outras figuras geométricas, sem cujos meios é humanamente impossível entender uma só palavra; sem esses é um vão caminhar por um obscuro labirinto.

Neste texto Galileu não está defendendo a primazia da física matemática, dentre as várias modalidades de física que se cultivam hoje em dia. Nem faria sentido: naquela época física era uma coisa só. A tese de Galileu é que a linguagem bíblica não se presta a uma descrição da ciência, e, por isso, as Escrituras devem, no que concerne a ciência, ser interpretadas como uma alegoria, um poema sobre a natureza. Ninguém pensaria em procurar na Bíblia argumentos sobre a validade do teorema de Pitágoras. Galileu pede que isto seja estendido também às leis da natureza.

Muito séculos depois, outro grande escritor italiano, Primo Levi, maravilhou-se quando, estudante recém-ingressado no Instituto de Química da Universidade de Turim, ouviu o professor expressar-se em uma "linguagem essencial", um alívio, nas salas de aula, num país dominado pela retórica demagógica do fascismo. Era de novo a linguagem da ciência opondo-se a uma linguagem oficial inadequada.

Um terceiro exemplo de linguagem inapropriada para a ciência vem-nos de Richard Feynman. Sempre achei que uma das maiores invenções de Feynman foi o seu pai, Melvin Feynman, didata extraordinário a ponto de ser dificil aceitar que um homem de educação formal escassa tivesse tanta sabedoria no campo da ciência. Sabedoria, não erudição. (Naturalmente isto também se diz de Shakespeare: que um homem com a sua (falta de) educação não poderia ter escrito coisas tão extraordinárias. No entanto, escreveu!). Alguns exemplos, tirados do livro "What do you care what other people think?":

We had the Encyclopaedia Britannica at home. When I was a small boy he used to sit me on his lap and read to me from the Britannica. We would be reading, say, about dinosaurs. It would be talking about the Tyrannosaurus rex, and it would say something like, "This dinosaur is twenty-five feet high and its head is six feet across."

My father would stop reading and say, "Now, let's see what that means. That would mean that if he stood in our front yard, he would be tall enough to put his head through our window up here." (We were on the second floor.) "But his head would be too wide to fit in the window." Everything he read to me he would translate as best he could into some reality.

We used to go to the Catskill Mountains, a place where people from New York City would go in the summer. The fathers would all return to New York to work during the week, and come back only for the weekend. On weekends, my father would take me for walks in the woods and he'd tell me about interesting things that were going on in the woods. When the other mothers saw this, they thought it was wonderful and that the other fathers should take their sons for walks. They tried to work on them but they didn't get anywhere at first. They wanted my father to take all the kids, but he didn't want to because he had a special relationship with me. So it ended up that the other fathers had to take their children for walks the next weekend.

The next Monday, when the fathers were all back at work, we kids were playing in a field. One kid says to me, "See that bird? What kind of bird is that?"

I said, "I haven't the sligthest idea what kind of bird it is."

He says, "It's a brown-thoated thrush. Your father doesn't teach you anything!"

But it was the opposite. He had already taugh me: "See that bird?" he says. "It's a Spencer's warbler."(I knew he didn't know the real name.) "Well, in Italian, it's a Chutto Lapittida. In Portuguese, it's a Bom da Peida. In Chinese , it's a Chung-long-tah... You can know the name of the bird in all the languages of the world, but when you're finished, you'll know absolutely nothing whatever about the bird.... So, let's look at the bird and see what it's doing--that's what counts." (I learned very early the difference between knowing the name of something and knowing something.)

Na ciência, substituir o conteúdo pelo nome leva a erros do seguinte tipo:"se a relatividade é verdadeira, então tudo é relativo, logo, a relatividade é relativa, não podendo ser uma verdade absoluta" (encontrei esta pérola em um livro de introdução à filosofia, escrito por um padre catalão).

Física não é matemática!

Galileu nunca pretendeu dizer que a física é matemática. Nem faria sentido, principalmente naquela época. Isaac Newton, inventando a física teórica, deu à matemática um novo papel na física. Enquanto, antes dele, a linguagem matemática tinha principalmente um papel organizador, a partir de Newton passou a ter um poder preditivo: passa-se a usar a matemática para investigar a totalidade das previsões de uma teoria. No entanto, mesmo aí, física não é matemática.

Três instrumentos de natureza não matemática essenciais na física são a experiência e a experiência ideal (gedanken Experiment), e a construção de instrumentos. Na atual concepção da ciência de Freeman Dyson, os instrumentos (tools ) são o elemento principal no desencadeamento de revoluções científicas. Assim, Galileu concebeu o plano inclinado como instrumento para tornar a queda livre um processo menos vertiginoso, uma espécie de câmara lenta, permitindo o estudo quantitativo da queda com os relógios precários da época. Papel semelhante teve a luneta, que lhe permitiu exibir exemplos de seu sistema solar, ou, contra-exemplos do sistema geocêntrico, que vinham a ser os satélites de Jupiter, que claramente giravam em torno de Júpiter, e não da Terra, como ditava a teoria geocêntrica.

A medida da velocidade da luz

Talvez nunca tenha havido medida mais importante e genial do que a que levou à descoberta, por Römer, de que a luz tem uma velocidade finita, e à determinação de seu valor. Römer usou, para isto, a variação da duração dos eclipses de um satélite de Júpiter segundo a velocidade da Terra em relação a Júpiter. Não vou descrever aqui os detalhes da medida porque não quero (e nem posso!) competir com Christiaan Huygens, que a descreve magistralmente no seu Tratado sobre a luz (na edição existente na biblioteca do IFUSP, da coleção BritannicaGreat Books, o tratado está na parte final do volume dedicado a Newton e Huygens, à página 556). Uma descrição mais moderna, mas que não perde a graça do ambientação histórica, acha-se no magistral Introduction to Concepts and Theories in Physical Science, de Gerald Holton e Stephen Brush. Na edição que tenho está na página 387.

A famosa carta a Hooke

Sir Isaac Newton é costumeiramente apresentado como um grande físico teórico, o que ele, sem dúvida foi. O maior, e o primeiro: o inventor da física teórica! Mas Newton foi também um soberbo físico experimental e construtor de instrumentos. A sua Opticks é principalmente uma descrição de suas engenhosas experiências com a luz; a invenção e construção dos telescópios refletores atestam sua habilidade como construtor de instrumentos.

Neste parágrafo descrevo uma proposta de experiência feita por êle a Hooke, em uma famosa carta de 28 de novembro de 1679. O que surpreende na proposta é como ela é moderna. O que ela ensina é que a leitura dos clássicos pode ser recompensadora mesmo para as mentalidades mais pragmáticas e utilitárias.

Newton tinha relações tensas (eufemismo deliberado!) com muitos de seus contemporâneos. Em particular com Hooke. Os problemas eram quase sempre do tipo "quem descobriu o que", ou seja, prioridades científicas. O mundo então já era igualzinho ao nosso. A carta em questão é resposta a uma, conciliatória, que Hooke lhe mandara, propondo que trabalhassem em colaboração. Passo a citar (em azul) o notável livro de Arnol'd , Huygens & Barrow, Newton & Hooke, (Birkhäuser Verlag), com inserções minhas, em vermelho:

Newton respondeu muito rapidamente--em quatro dias. Esta carta notável escrita por Newton em 28 de novembro de 1679 começa com a admissão de que ele está abandonando a filosofia e que esteve recentemente ocupado com outros assuntos. Aparentemente a idade estava pesando (Newton já tinha 37 anos, e esta era a idade em que se torna difícil interessar-se por matemática e por outros ramos da filosofia). "Apenas ouvi falar...", escreve Newton, "de suas hipóteses de composição dos movimentos celestes dos planetas...embora não haja dúvida de que são bem conhecidas do mundo filosófico...Minha afeição à filosofia tendo se esvaído, .. estou quase tão pouco atento a isto como um profissional está atento à profissão de outro, ou um camponês está atento à cultura..."

A palavra "filosofia", na época, significava todas as ciências exatas. A física era então chamada de filosofia natural. Os outros assuntos sobre os quais Newton escreveu consistem, ao que tudo indica, em sua paixão pela alquimia. (Aparentemente ele não contava isso como filosofia, embora o objetivo desta ciência fosse encontrar a pedra filosofal). Newton possuía um grande laboratório de química (ou, se quisermos, de alquimia) e, tendo trabalhado intensamente entre as idades de 20 e 30 anos em matemática e física, fazendo aí muitas coisas, estava agora interessado em obter ouro.(Fenômeno que se mantém, mutatis mutandis, em nossos dias: obter ouro agora é trabalhar em Wall-Street ou equivalente, como físico ou matemático) . Colecionou um grande número de receitas preservadas da Idade Média, e pretendia manufaturar ouro de acordo com as instruções contidas nelas. Os esforços que dedicou a isso foram significativamente maiores do que aqueles gastos com seus trabalhos de física e matemática, mas não obteve resultados úteis. É verdade que Newton não esteve sempre convencido disso. Diz-se que em seus cadernos (e ele anotava seus experimentos em detalhe, descrevendo o que ele misturava com o que, e que resultados obtinha, de maneira que, se obtivesse ouro por acaso, poderia reproduzir o processo) há um trecho em que, depois de uma detalhada descrição das ações realizadas, ele comenta o resultado: "Fedor terrível. Parece que estou perto."

O problema dos corpos em queda.

Depois de dizer que está muito velho para a pesquisa, Newton propõe a Hooke uma experiência para determinar se, como dizia Copérnico, a Terra está em movimento não só em redor do Sol, mas também em redor de si mesma. Voltemos a Arnol'd:

De fato, de acordo com os princípios da invariância de Galileu, é impossível descobrir um movimento retilíneo uniforme, por si só, mas, em princípio, uma rotação pode ser observada ( sem comparar com outro corpo, isto é). Por isso, diz Newton, afim de convencer aqueles que não acreditam na teoria de Copérnico (que a Igreja Católica, por exemplo, iria reconhecer só em 1837) é necessário testá-la experimentalmente. Aparentemente Newton foi o primeiro a se pôr o problema de uma verificação experimental da rotação da Terra. Além disso, ao propor o problema a Hooke, Newton sugeriu um método que, em princípio, tornaria possível fazê-la.

A idéia é a seguinte: suponha um mastro vertical alto, e duas esferas, uma a uma pequena altura, a outra no tôpo do mastro. Para simplificar, o mastro está no equador. Por causa da rotação da Terra, ambas as esferas têm a mesma velocidade angular, que é a da Terra. Mas as velocidades tangenciais são diferentes, para as duas esferas: a do alto terá uma velocidade tangencial maior. Como, pela inércia, essa velocidade se mantém inalterada, a esfera do tôpo vai atingir o chão mais à frente do mastro do que a esfera de baixo. Então, para comprovar a rotação, basta verificar este fato. No entanto, para as alturas de que se dispõe, a diferença é mínima, e muito difícil de detetar. Vamos ver como fazê-lo.

A experiência

Na realidade, basta verificar se uma esfera que cai sem ser disturbada cai na vertical ou "adiante" dela (a experiência dá resultado nulo nos pólos, e máximo no equador). Newton propôs a Hooke a seguinte técnica: coloca-se sob a esfera, bem centrada, uma cunha (ele diz "a steel"). A esfera, ao cair, irá para um lado ou outro da cunha. Se a Terra gira, ela deverá cair para um dos lados, aquele que corresponde ao sentido da rotação. Contudo, o efeito é muito pequeno, para as alturas disponíveis. A idéia de Newton, muito moderna, é usar um grande número de esferas (ou um grande número de quedas da mesma esfera) e contar quantas vezes ela cai para cada lado da cunha. Se o número for o mesmo, dentro da precisão consentida pela estatística, a Terra está parada. Se ela gira, a esfera cairá mais vezes para um lado do que para o outro. Acredito que esta tenha sido a primeira vez que a estatística tenha sido usada para "amplificar" um efeito muito pequeno.

A experiência foi realizada por Hooke, com resultado positivo. Ele estava muito bem aparelhado para fazê-la, pois era empregado da Royal Society com a função de, semanalmente, realizar, para os membros, demonstrações experimentais de fenômenos recentemente descobertos, por ele ou por outros. Foi uma experiência muito importante, e o resultado foi claro. Podemos, assim, dizer que a primeira demonstração absoluta da rotação da Terra foi realizada, em colaboração, por Newton e Hooke. Mas sua colaboração terminou aí. Logo depois voltaram a brigar...

Einstein e a velocidade da luz

Passemos agora às experiências ideais. Einstein foi o grande mestre nesta arte. Embora a sua experiência ideal mais famosa seja a do "elevador de Einstein", que ensina como construir sistemas de referência inerciais (e muitas outras coisas importantes, como o "princípio de equivalência"), a que mais me impressiona é aquela em que se imagina acompanhando, com igual velocidade, uma onda de luz. O que, então, "veria"? Um campo eletromagnético com as seguintes propriedades: estático (pois, movendo-se com ele, elimina sua dependência temporal) e variável com a posição: uma senóide (por exemplo), com amplitude decaindo com a distância na forma 1/r. Ora, não existem soluções da equações de Maxwell com essas propriedades: as soluções da equação de Maxwell com dependência 1/r são necessariamente dependentes do tempo. Logo, há algum problema em se viajar à velocidade da luz. A partir desta observação já se sabe onde chegou...

Este é um grande exemplo da extraordinária intuição de Einstein, sua arma principal. Ao contrário do que se costuma dizer, Einstein não era um bom matemático. Disse Hilbert "Qualquer escolar de Göttingen sabe mais geometria riemanniana do que Einstein, no entanto, sua fina intuição o levou a construir, antes dos especialistas, uma teoria cuja formulação dependia fortemente da geometria riemanniana". Hilbert sabia o que dizia, pois Einstein não bateu, na competição em busca da Relatividade Geral, algum escolar de Göttingen, mas o grande mestre, o próprio Hilbert!

Matemáticos e matemáticos.

Há matemáticos e matemáticos. O grande Riemann interessava-se muitíssimo por física, e até, em seu teorema mais famoso, o teorema da representação conforme, utilizou-se, em um certo ponto, de um argumento de física, para cobrir um "gap" da demonstração. E há matemáticos que não têm qualquer interesse pelas aplicações, em física ou fora dela. Um exemplo conhecido é Godfrey Hardy, o grande analista inglês. O caso mais extremo é o de Paul Erdös. Este realmente viveu só para a matemática. Fora dois ou três empregos temporários, jamais teve qualquer posição fixa em uma universidade. Na verdade, na maior parte de sua vida, não teve sequer endereço. Vivia de dar seminários, e se hospedava então na casa de quem o convidava. Não admitia distrações à pesquisa. Publicou cerca de 1500 trabalhos, tantos e com tantos colaboradores, que se inventou o "numero Erdös" de cada matemático: quem publicou um trabalho com Erdös tem número 1, aquele que não publicou com Erdös, mas publicou com quem tem número Erdös 0, tem número Erdös 1, e assim por diante. Aqui na USP temos pelo menos um matemático com número Erdös diferente de zero: o professor Yoshiharu Kohayakawa, mais conhecido como Yoshi possui número Erd\"os 1.

"The unreasonable effectiveness of mathematics in the physical science "

No entanto, a matemática é instrumento poderosíssimo na pesquisa física. É o sexto sentido dos homens, e o sétimo das mulheres.
A frase que encabeça este parágrafo é originária de Einstein, em uma comunicação para a Academia Prussiana de Ciências.

"Neste ponto um enigma se apresenta que, em todas as idades, agitou as mentes inquiridoras. Como é possível que a matemática, sendo afinal um produto do pensamento humano, que é independente da experiência, seja tão admiravelmente apropriada para os objetos da realidade? Será que a razãohumana é, sem recurso à experiência, meramente pelo pensamento, capaz de sondar ("fathom") as propriedades das coisas reais?
Em minha opinião a resposta a esta pergunta é, em poucas palavras: na medida em que as leis da matemática referem-se à realidade, elas não são exatas; e, na medida em que elas são exatas, não se referem à realidade."

A esta altura convém contrapor o famoso artigo de Wigner, intitulado quase como este parágrafo, à opinião de Einstein. E, já que estamos com a mão na massa, convém olhar a visão de um grande engenheiro, R. W. Hamming, sobre o mesmo assunto. E, para terminar, nada melhor do que as palavras sensatas de Dirac,
no prefácio de seu Principles of Quantum Mechanics : A book on the new physics, if not purely descriptive of experimental work, must be essentially mathematical. All the same the mathematics is only a tool and one should learn to hold the physical ideas in one's mind without reference to the mathematical form.

Obrigado.



Created on april 13, 2002